DOS DITOS POULARES I - Queria ser uma mosquinha.. Pessoas bisbilhoteiras e ociosas geralmente usam a expressão “queria ser uma mosquinha”, ou, com o complemento, “queria ser uma mosquinha pra escutar o que eles estão dizendo”, quando presenciam uma conversa alheia. A curiosidade, eu concordo, é uma dádiva, mas nesses casos, não passa de mero interesse em transformar as palavras dos outros em fofoca, falação.
Calor. Um sentimento que nem o guarda-sol consegue esconder. A oitava cerveja está bem menos gelada do que as outras. O isopor não está mais cumprindo o seu papel corretamente. Se continuar assim, daqui a pouco estarei tomando sopa de cevada. A bola está abandonada a horas, não ouso me esticar para pegá-la. Expor qualquer parte do corpo para fora do metro quadrado de sombra que o guarda-sol proporciona significa correr o risco de ser desintegrado pelos raios U.V.A., U.V.B., U.V.C., e essa merda toda.
Haroldo, o gato, não agüenta mais ficar parado. Os dias estão completamente cheios. Lúcia enterra o palito do picolé, eu molho as mãos no pouco gelo que resta no isopor, para refrescar o rosto. Onde está o cara que disse que o protetor não saía com a água? Nossos corpos estão completamente melados. Quesito inatividade, nota 10. Haroldo espanta uma mosca com as orelhas, mas ela insiste em pousar na sua cabeça. Ele vira a barriga para cima e esfrega as costas no chão. A mosca nos observa de sobre a ponta do palito que ficou para fora da areia. Esfregando as patas como se estivesse afiando os talheres antes de devorar a sua refeição. Nós, no caso. Obviamente a mosca não nos devoraria. Nem eu, nem Lúcia, nem mesmo Haroldo. Mas, como nessa vida certezas temos poucas, e nenhum de nós ousaria sair debaixo do guarda-sol nesse momento, preferi evitar o possível confronto sem precisar bater em retirada – isso só seria possível dentro de, no mínimo, três horas.
Peguei uma garrafa vazia e bati com ela no palito até enterrá-lo completamente. A mosca alçou vôo, mas logo que concluí meu objetivo tornou a pousar no lugar onde antes estivera o palito de madeira. Estiquei o pé até o limite da sombra e, com uma flexão dos dedos, joguei um pouco de areia no local. Ela voou até o ferro do guarda-sol e uma vez lá pousada, nos olhou com um tom de ameaça. Como se pudesse alçar vôo a qualquer instante e levar consigo não só o nosso guarda-sol, mas também a pouca sombra que nos mantém íntegros até agora. Primeiramente duvidei da mosca, “ela não teria a audácia de fazer isso”. A mosca nem sequer abalou-se, permaneceu firme como se pudesse medir o meu medo com os olhos. Naquele instante ela pareceu ter o controle da situação. Inclinei-me de maneira que pudesse mantê-la no meu raio de visão, não queria perdê-la de vista, mas mesmo assim, não abusei muito dos movimentos. Além do mais, ela parecia saber que, sob hipótese alguma, eu a atacaria enquanto ela estivesse pousada no ferro ou em qualquer outra parte do guarda-sol. Não colocaria a nossa sombra em risco por nada. Certo, a mosca postou-se estrategicamente, agora resta esperar. Praticamos o jogo da paciência por alguns minutos. Haroldo mantinha-se deitado de costas e cada vez que eu oferecia meu olhar de perplexidade Lúcia dava de ombros como se realmente não estivesse se importando nem um pouco. Eu não duvidava disso, mas bem que queria.
Servi-me de outra cerveja enquanto a mosca permanecia impassível. Tateei por sobre a toalha a fim de achar o abridor sem, em nenhum momento, tirar os olhos da mosca. Ela, por sua vez, com suas dezenas de olhinhos, manteve-se me encarando. Mesmo quando eu abri a cerveja e deixei a tampinha propositalmente virada com a parte molhada para cima, ela não saiu de sua posição. Nem deu a entender ter um mínimo de vontade de provar o sabor da minha cerveja. Manteve-se firme, em sua posição de superioridade. Ela era apenas uma mosca contra o mundo, mas nessa ocasião, o mundo inteiro teria que passar por cima de mim antes de encostar um dedo no ferro do guarda-sol onde a mosca permanecia irredutível.
Olhei ao redor. As pessoas pela praia pareciam não ver o que se passava. Haroldo continuava imóvel, diria até que estava morto se não se tratasse de um costume dele. Procurei em Lúcia alguma palavra de amparo, mas ela já não suportava mais assistir a minha “batalha” com o terrível inseto alado. Depois de pensar um pouco, cheguei a uma conclusão de como poderia fazer aquele ser peçonhento se afastar do nosso guarda-sol e, conseqüentemente, das nossas vidas. Abri o isopor, saquei um cubo de gelo e apertando ele com toda a força e o calor da minha mão fi-lo derreter e pingar. Infelizmente os pingos pareciam evitar a mosca. Ela mesma nem se moveu, mesmo quando algumas gotas que escorriam pelo ferro do guarda-sol passavam logo ao lado de suas patinhas asquerosas. A cerveja já não me descia pela garganta, não somente por estar quase quente, mas porque não conseguia mais relaxar sabendo que estava sendo constantemente observado. Resolvi fazer um sacrifício. Sim, muitas vezes um sacrifício é necessário para solver um problema aparentemente insolúvel, ou de alta complexidade. Tirei a toalha de perto e virei praticamente metade da minha cerveja no ferro onde a mosca estava pousada, evitando me aproximar demais dela. Lúcia xingou-me de diversas coisas, as pessoas ao redor não tiravam os olhos de nós, provavelmente pensando que estivesse se tratando de alguma briga de casal ou coisa parecida. Haroldo bocejava, cada vez mais cansado de não fazer nada.
A cerveja pareceu afugentar a mosca, mas não tive sequer a oportunidade de comemorar, pois Lúcia despejava sobre mim uma infinidade de palavras que me deixavam zonzo, a ponto de nem conseguir acompanhar o seu raciocínio. Lembrei de diversas coisas, inclusive o motivo de estarmos ali, naquele momento. Havia muito tempo que Lúcia e eu não conversávamos mais sobre os “nossos” problemas. Talvez este fosse o nosso maior problema, a falta de diálogo. Cinco anos de relacionamento e tenho certeza que ela conseguiria contar nos dedos, imediatamente, os poucos dias em que começamos e terminamos juntos. Sem trocar uma única palavra agressiva, fugir os olhares para outras coisas, ou pessoas.
Pessoas. As pessoas ao redor nunca nos pouparam de suas opiniões e comentários. Ninguém até hoje teve sequer a educação de pedir licença para se intrometer em nossa vida ou em nossas discussões. Todos pareciam esperar a oportunidade de dar um palpite ou criticar algo. Senhores da verdade e da razão. Nunca tive uma decisão 100% minha, desde que eu e Lúcia estamos juntos, sempre houve alguém para redefinir os caminhos a serem seguidos. Não sei até que ponto ela se importava com isso, mas, com certeza, foi uma semente de veneno plantada em nosso quintal. Ela sempre foi mais acessível e comedida do que eu. Aceitava sem problemas o que quer que fosse que alguém viesse lhe dizer, comentar, ou até, impor, mesmo que no momento seguinte ignorasse por completo aquilo que tinha ouvido, ou aproveitasse muito pouco. Eu, diferente disso, não suportava ouvir palpites e conselhos que não passavam de um pretexto para fuxicos. E, é claro, que isso foi minando o nosso relacionamento até o ponto em que nenhum dos dois conseguia dar um passo em frente com o mínimo de segurança que se espera possuir após esse tempo todo. Vivíamos recuando.
Novamente procurei uma palavra ou um olhar nas pessoas que nos cercavam naquela praia, cada qual com seu guarda-sol florido, colorido ou de propaganda. Esperava encontrar alguma expressão de satisfação ou do tipo “eu bem que avisei”, “viu, bem feito”, etc... Busquei no fundo de minhas memórias as centenas de pessoas que poderiam estar desejando agora ouvir tudo aquilo que Lúcia colocava pra fora e eu, desajeitado, tentava rebater. Pensei nas vizinhas, na empregada, na minha sogra, tias e até na minha própria mãe. Nos amigos e amigas, parentes e colegas de trabalho que, por algum motivo, estúpido que fosse, desejariam estar sobrevoando nossas cabeças. Nosso diálogo e pensamentos. E, nesse tempo todo, Lúcia não ofereceu um segundo de silêncio. Já quase ia esquecendo a mosca quando a desgraçada cruzou o meu raio de visão, como que para lembrar que ainda estava ali. Apesar de tudo, e, da minha montanha de problemas, ela ainda estava ali.
Tomei as rédeas. “Cala a boca!” Falei sem nem medir as conseqüências do que dizia. “Como assim? Você acha que tem ainda alguma moral pra me mandar calar a boca? Depois de tud...” “Cala a boca! Simplesmente CALE A BOCA!” Ela não deve ter entendido, e dessa vez nem importava mais, porque na verdade nem eu conseguia assimilar o que estava acontecendo, queria apenas resolver o impasse com a maldita mosca cheiradora de merda de cachorro. Não importava mais nada além. Não podia mais reverter o placar, já estava derrotado. Nesse instante queria apenas o meu ‘gol de honra’. Queria quebrar a perna do principal artilheiro do time adversário. Mandá-lo para o chuveiro mais cedo. Melhor, mandá-lo para o hospital por uma semana. Ou talvez pelo resto da temporada. Mandá-lo pro inferno! Para o seu inferno particular.
Eu não tinha mais nada a perder. Dobrei cuidadosamente o caderno de esportes. Não pareceu oferecer muita firmeza, então, dobrei também e adicionei os classificados de imóveis. Curioso lembrar disso agora, mas, meu pai sempre falou que tinha dois imóveis. Um era a casa onde nós morávamos, o outro era eu. Segundo ele, ‘eu não me mexia pra nada...’ Nunca achei graça disso, mas, não esquecendo do meu objetivo agora, bati o mata-moscas improvisado contra a palma da mão esquerda, apenas pra sentir um pouco do meu poder de retaliação. Aguardei uns instantes e finalmente observei a mosca preparando-se para pousar na orelha esquerda de Haroldo. Ajoelhei-me sobre a toalha e apoiei a mão esquerda na areia, que parecia mais o fundo de uma panela em fogo alto, mas não importava mais. Ergui silenciosamente a mão direita empunhando a minha clava esportiva, “tranqüilo e infalível como Bruce Lee”. Ao descer ela zuniu cortando o ar como se nem a mão de deus pudesse pará-la nesse momento. Percorreu majestosamente um longo percurso até que TLUFT! Encontrou algo que a impedisse de seguir adiante. O ponto onde se encontrava a maldita mosquinha. A orelha esquerda de Haroldo, e um pouco mais talvez.
Baixada a adrenalina do momento, olhei ao redor. No chão. Tentando encontrá-la. Em vão... A mosca com certeza não morreu, possivelmente tenha ficado surda. Já o gato, não teve tanta sorte... Enterrei o bichano ali mesmo, ignorando os olhares e o falatório dos outros veranistas; e, logo que havia terminado, o sol já estava baixo o suficiente para que pudéssemos ir para casa. Lúcia sacudiu a toalha e colocou as coisas dentro da sacola de qualquer maneira, eu fui até a água lavar o ferro do guarda-sol e depois de abraçar-me ao isopor cheio de garrafas vazias, fomos embora em silêncio, sob o olhar repreensivo de todos aqueles que não entendiam nada do que estava acontecendo.
“Queria ser uma mosquinha...” Que expressão mais estúpida essa!