20090717

17032007

tirem da vida estas gentes
com seus porres sóbrios e safadezas sem suor
que envergonham-se das barrigas e estrias no amor
vomitam em receptáculos descartáveis apenas
e a duras penas flutuam nas colunas invertebráveis dos jornais
tirem da vida estas gentes
que deixam fotografar suas casas impecáveis
com banheiros que não permitem cagar
e toda a merda que seus muros escuros escondem atrás
tirem da vida este lugar
tirem já!
as garagens automáticas
com suas super-máquinas prontas pra rodar
bancos de couro e ouro e cristais
tirem já!
o ar-condicionado, vidros blindados e motorista particular
tirem da vida estas gentes
de fraquezas freqüentes e nada a declarar
que bebem seus medos em mesas de outro bar
com companias tão frias quanto o seu olhar
e nenhum romance
tirem da vida essas gentes
de palavreado rebuscado e muito pouco a dizer
parcas piedades e apenas uma pequena vontade de fazer mal
tirem da vida estas gentes
que insistem em ser a elite
mesmo quando a elite não passa de um alvo triste nos postais baratos
tirem da vida estas gentes
elas já estão mortas demais
com suas manias e arrependimentos
e vergonhas e preconceito e um monte de defeitos banais
estas gentes que falam tolices e se contradizem
que não pagam o pedágio das sinaleiras
sobem os vidros e os ouvidos entopem
escondem as moedas menores nos cinzeiros do carro
não pegam nas carteiras por medo de já se terem roubado
nem vêem o frio, a fome e a falta de fantasias
e freqüentam academias buscando alguma segurança
gentes que não vivem no mundo mundano dos humanos
não pisam nas calçadas mijadas nem gastam saliva com estranhos
que têm medo dos pés-sujos e brindam somente em cristal
que não esquecem nem fotografam os seus deslizes e
não têm sequer algum deslize para ser fotografado
ou esquecido
tirem do mundo estas gentes
que pagam com vidas a sua bebida
e não sentem nada, nem alegria, nem dor no dia seguinte
e suas cabeças que só servem pra pensar
tirem já!
gentes néscias que nem sabem como abraçar
com suas mãos que só sabem apertar um botão
ou empinar o nariz
tirem já!
estas gentes que não têm nada infeliz pra contar
nem um fora nem uma foda inacabada
nem saudade de alguém que lhes deu um pontapé na bunda
tirem da vida estas gentes
que vivem em cima do muro
sem presentes nem passado nem futuro
que têm medo de furtar uma fruta e afundam famílias com seus cheques sem fundo
gentes que sentem somente sede
de poder
nem frio nem calor nem dor nem sequer amor
nem fome nem força nem fraqueza nem uma forte correnteza a algemar seus calcanhares
nem sono nem cansaço nem batimentos cardíacos ou vontade de chorar
tirem da vida estas gentes
sem paladar
sem parte alguma pra ir
mas sempre indo a algum lugar
com seu eterno 'tenho que ir..'
tirem-nos daqui!
permita que eles deixem o mundo desfilando em uma carreata de caminhões de lixo
imundos
sem ninguém correndo ao redor, nem ninguém pra quem acenar
tirem da vida estas gentes
estas gentes cheias de vermes e venenos em suas línguas compridas
de caninos esculpidos e escovas de dente elétricas
em seus gargarejos com Perrier
em seus soluços e engasgos
em seu asno jeito de ser
tirem deles o passe livre
tirem seus sapatos
tirem da vida estas gentes
que nos fazem caminhar na brasa dos seus cigarros
tirem da vida estas gentes
tudo o que eles me deram eu paguei mais caro
tirem da vida estas gentes
que sempre conseguem nos tirar do seu caminho
tirem eles em silêncio
mas não tirem com carinho

tirem da vida estas gentes
que não sentem pena nem vergonha
que não gritam por socorro, só oprimem
com seus ternos e vestidos que custam uma casa própria
e suas jóias e peles e couro e marfim
e tudo o mais que da terra podem tirar
tirem da vida estas gentes
em seus escritórios, consultórios e confortáveis salas de estar
com suas tevês de trezentas polegadas e seis mil canais pra mudar
com paredes pintadas com sangue
e cães de caça nos quintais
tirem deles os sobrenomes dos seus pais
tirem as heranças e as danças e os bailes e os ramais com melodias de Beethoven
tirem deles os chuveiros de onde chove dinheiro
suas jacuzzi do futuro e banheiras banhadas a ouro
coleções de roupas de banho e toalhas com ideogramas
creme hidratante feito de embrião humano
e fontes da juventude particular
tirem já!
tirem da vida estas gentes
que só sabem fazer sofrer
tiram de mim, de você, de todos que podem perder
sem bom senso nem nada que possa ser chamado de bom
tirem da vida estas gentes
sem coração nem coragem
que não sabem dizer obrigado
tirem da vida estas gentes
com seus sorvetes e absorventes
e somente motivos aparentes
com seus discursos de mentira à mesa
orações decoradas e nada de fome
agradecimentos em silêncio por não ter nada a dizer
tirem da vida essas gentes
que não sabem arrotar
que não cospem no chão
e nem sujeira de nariz têm pra tirar
tirem já!
tirem da vida essas gentes
que não espalitam os dentes
que caminham somente nas calçadas
e não fazem nada na privada pra se envergonhar
com suas pregas preservadas
em talco e hipoglós
suas virgindades sem graça nem motivo
só um sorriso particular
tirem da vida estas gentes
que têm medo de peidar no ônibus e fazer xixi no mar
que tomam comprimidos pro pau subir e sobem pelas paredes depois
que têm testículos trocados e fazem transfusão de esperma ao invés de gozar
têm gosto de nada e não gostam de ninguém
tirem tudo o que eles têm
tirem do fundo e de onde mais convém
das garagens, dos colchões e carteiras
dos bancos e financeiras e mais
de bolsos escondidos em jaquetas esquecidas
e das apostas perdidas
tirem já!
tirem da vida estas gentes
que não mentem
nem medem esforços para ferrar
tirem das praias
das praças
do espaço
de qualquer lugar
tirem eles das casas de campo
dos spas e restaurantes e butecos
das casas de massagem e dos hotéis cinco estrelas
tirem eles das churrascarias de beira de estrada
eles não entendem nada
e nem têm nada pra ensinar
nenhum segundo do seu ar é sagrado
sempre condicionado
só sabem ouvir veludo
tirem da vida estas gentes
e tirem deles tudo
suas calças, camisas e calcinhas
e escovas de dente
tirem já!
dos cassinos e cafés e cinemas e mais
tirem eles das lojas de conveniência
dos shopping centers e farmácias
de todo e qualquer lugar que um dia possam ter vontade de estar
tirem da vida estas gentes
que nos fazem caminhar na brasa dos seus cigarros
tirem da vida estas gentes
tudo o que eles me deram eu paguei mais caro
tirem da vida estas gentes
que sempre conseguem nos tirar do seu caminho
tirem eles em silêncio
mas não tirem com carinho
19122006

champanhe
nada mais de espumantes baratas
e basta
uma única aposta até o fim da noite
uma única noite até o fim
amanhã a maior parte de nós nem vai lembrar porque partiu
porque ficou
porque foi
a que veio
qual a marca
qual o preço da ressaca

champanhe
nada mais entre as orelhas
chatas
uma dúzia de mulheres baratas
o refluxo é um luxo e não basta
música baixa, mas ninguém quer ouvir o que se passa
atravesse a sala
a piscina
o meu peito com uma espada
atravesse o salão sob os olhares desgraçados
através da noite tudo aquilo que a gente foi foi errado
tome agora um gole e disfarce
ontem foi o pau
hoje é o meu zíper que não quer subir
disfarço o meu rubor com um copo de campari na altura dos olhos
o globo espelhado não vai contar nada
eu já estou nos descontos
SALE 10% off
é o que me escapa das calças
essa é a melhor festa em que eu já estive

champanhe
nada mais na piscina mon amour
os olhares vão e vem
algumas coisas mais, também..
ébrios de brinquedo
uma meia dúzia de meninos com medo
braços e bocas que não se contém
vão e vem
vai e vem
ela é puro êxtase
cum for me baby!
o meu coração não pode mais esperar
os azuis dispararam com ele, contra ele
contratempo
- ei cara, espere a sua vez!

champanhe
nada mais é problema
não pise na grama
transite apenas pelos passeios
não alimente os animais
eles nem sabem mais que horas são
- acho que ouvi um uivo, Allen..
este veículo possui cofre boca de lobo
a chave encontra-se na empresa
monitorado via satélite
então cale-se e apenas escute
pela primeira vez na televisão
validade 07 dias a partir da data de fabricação
será que os convidados já foram embora?
nem lembro mais quando começou a festa

champanhe
nada mais pra esquecer
o prólogo viu mais álcool que um enólogo
e a rima mais estúpida pra dizer
mais uma noite na portaria e estamos quites
bem vindo ao carrefour retire seu ticket
e boas compras
- ei papai, eu quero aquela garota!
ambiente exclusivo para fumantes
- mas filha, você ainda não tem 18 anos...
o ministério da saúde adverte
no smoking!
o cigarro causa efisema pulmonar, câncer e mais um monte de merdas
.. essa garota, a da calça transparente, ela parece a filha do meu chefe
querida, você não é bonita o suficiente!
- mas papai!?

champanhe
- nada de mas, nada demais...
desaconselhável para menores de 18 anos
bêbada com moderação
o segurança quer ter uma conversa
a dona da casa me disse que ele é bem servido
serve bem
- amiga, mas eu nunca experimentei..
o primeiro sutiã a gente nunca esquece
ouvi dizer que ele trabalha num shopping bem chique
e come sempre as sobras do francês
e o francês também quando está de folga
tem uns rapazes se divertindo no terraço
quem sabe não subimos lá para pegar um ar?
não, obrigado, não posso
semana passada empurraram um amigo nosso
mas sem nenhuma intenção de machucar
apenas porque ele queria dar um discurso
será que hoje ele vai tentar o mesmo?
não, eles esvaziaram os pneus da sua cadeira de rodas
vai ficar só, na sala bebendo
amanhã a moça da faxina troca as suas fraldas
- nada de mais, nada de mais...

champanhe
nada mais entre as pernas
vou só botar a calça e já era
as luzes entram pela janela
sirenes e creme de baunilha
pode tomar um banho gatinha
os uniformes informam que chegou a quadrilha
ok, acenda a fogueira, pendure as bandeirolas
já estava na hora
agora é só mais um passo e compramos o silêncio
- aquilo ali no espelho é farinha?
- não oficial, é a minha cocaína..
presente de uma prima que veio da bolívia
tome aqui cinquenta e fique à vontade
mas depois não esqueça de me devolver a nota
- vocês tem autorização pra essa festa?
- quem tinha era aquele cara com a gringa no braço
mas ele vomitou por uma semana e depois não quis mais conversa
- hummm, parece que a situação é esta
vamos provar uns petiscos e voltamos na sexta
uma matilha de cadelas atravessa a sala
os porcos as seguem em fila indiana
o ar-condicionado suspira algo mas não fala
hoje é recém terça-feira

champanhe
nada mais de música
o que será que houve com a jazz band?
tô nem aí.. tô nem aí..
no pátio há chuva e carros sem capota
na porta um aviso de não perturbe
tem um cachorro lambendo entre os meus dedos
espumando seboso e tendo uma ereção
o dono me avisa: - eles são assim mesmo
não tenha medo
ele não vai forçá-lo a fazer nada que você não tenha vontade
a guerra é uma arte!
guerra é dinheiro
com o cachorro degolado eu conquistei a mais gorda
amanhã eu começo de novo a minha dieta
a gente da TV está cobrindo toda a perversão
- cervejinha pra imprensa, torresmo!
ninguém pensa direito com a garganta seca
fome zero
será que ninguém viu aquela menina boiando na piscina?
sua pele branca refletindo o sol dá todo um clima
que desperdício de fotografia

champanhe
nada mais pra você minha querida
no meu celular apenas chamadas não atendidas
é hora de procurar a saída
o X indica o local
nada mal
um X-salada e uma gelada
- aceita cartão de crédito?
- não, obrigado, estou satisfeito.
- então me vê só a bebida
tenho apenas 4 pilas
fique com o troco
você nunca iria acreditar se eu contasse a história
- então pode começar mentindo...
não dou a mínima pro seu sorriso
- assim são os amigos
a propósito, o copo estava sujo
me sirva outra garrafa com um copo decente
quem sabe dessa vez a gente não se entende
- chupa aqui e você sobrevive
- não, obrigado, já estou satisfeito
você nunca iria acreditar se eu contasse a história
foi a melhor festa em que eu já estive

champanhe
nada mais

20090716

Pretensões

Tarde sem graça. Tarde abafada depois de uma manhã cinza e chuvosa. O ar-condicionado do carro parece não refrescar, acho que não funciona mais como deveria. Assim como todo o resto, as portas, a ignição... Sento em uma mesa na praça de alimentação de um hipermercado, em uma cidade da Grande Porto Alegre. Descansar um pouco – pensar – colocar uns pensamentos no papel, dar um tempo pro tempo... passar. Na mesa em frente dois moleques de uns treze ou quatorze anos. Rindo, conversando, discutindo coisas que um dia eles vão achar sem importância. As meninas ao redor, manobras de skate, as meninas do bairro, jogos de videogame, as meninas da escola, o novo disco do CPM 22, as meninas da última festa, briguinhas e confusões em geral, meninas e mais meninas lindas que eles nem conhecem ainda e que um dia – após acharem ter conhecido – descobrirão que nada sabiam a respeito de meninas.
Mas ei-los, com sua adolescência. Roupas do tamanho que eles desejariam ser. Cabelos desgrenhados e mal lavados escondidos por sob o boné de algum time americano de basquete ou baseball, o qual eles nunca viram jogar uma partida sequer – e nem se importam com isso. Seus tênis velhos que não querem dar lugar aos novos. O rosto esguio a esperar a barba que nunca vem. Uma garrafa de Coca-Cola e um pacote de biscoito recheado. Menos de quatro Reais por uma refeição a dois, e uma sinceridade que nunca mais vai se fazer presente – e, ainda assim, hoje eles não dão a mínima importância. As sobrancelhas curiosas e olhos ávidos deflagram um pré-niilista que hoje quer saber tudo, amanhã dirá saber tudo e tudo o que lhe for dito ele dirá não acreditar. Mesmo que não saiba nada esse nada lhe parecerá o suficiente por muito tempo.
Esses moleques acham que vão mudar o mundo. Acreditam nas bandas de rock milionárias. Juram que nunca vão casar. Idolatram o Che Guevara tatuado no braço do Maradona e ainda não sabem metade do que dizem saber sobre maconha. Querem ‘comer’ todas as meninas, mas ainda se borram de medo de fazer fiasco por também não saberem nem a metade do que dizem saber sobre sexo. Nunca leram um livro que não fosse imposição da escola e muitas vezes leram apenas o resumo. Mas mesmo com toda a sua impotência, dão risadas e acreditam que são livres... Suas pretensões são ainda muito superficiais, assim como as músicas do último disco do CPM 22. Irreversível.
Mas o tempo se encarrega de tudo aquilo que o homem parece não querer resolver por conta própria. A tarde segue sem graça e talvez fique mais abafada se eu deixar por conta do tempo. Num jogo de dados invisível vão-se avançando algumas casas involuntariamente. Uns a passos largos, outros pelos caminhos errados. Alguns tentando evitar essa evolução e poucos compreendendo o porque, do porque, do porque, das coisas tomarem os rumos que vão tomando – e, talvez, começando a dar alguma importância, mesmo não sabendo ao certo porque. Daqui a dez anos esses moleques serão homens. Homens são meninos com responsabilidades sobre alguém, alguma coisa ou ambos. Nunca existiu idade certa para definir isso, e, cada vez mais jovens, meninos dão lugar para homens. Meninos que vão aprender a deixar de lado os seus skates, guitarras e videogames. Que vão transformar o futebol em uma fuga e uma maneira de aliviar a tensão, nunca mais a diversão prazerosa que um dia foi. Vão ver que o mundo não tem graça. Não só em dias abafados. Nem só no período da tarde, mas o dia todo. Eles vão ter que vestir calças, calçar sapatos, usar cinto e evitar que a camisa saia fora das calças. Cortar os cabelos, aposentar o boné e fazer diariamente a barba que ainda sonham ter. A barriga crescerá na medida que os cabelos forem desaparecendo. A boa saúde se tornará um trunfo de poucos. Os risos serão escassos e perderão em número e intensidade para as dores de cabeça e frustrações. As meninas serão poucas e apenas uma pequena porção destas valerá a pena. E isso, infelizmente, cada um só saberá após ter feito a aposta errada. A vida custará caro. Infinitamente mais caro do que esses quatro Reais que hoje um deles não se importa em desembolsar por este momento sincero e, talvez, de importância estritamente imediata que ficará eternamente esquecido assim como as bandas de rock brasileiras que surgiram nos anos 90. E quando finalmente tiverem o dobro da idade que têm hoje, e depois, e depois, e depois, estes então homens vão querer seus quatorze anos novamente. Vão querer saber o que sabem sem precisar pagar o preço que pagaram por esse conhecimento. Vão querer, talvez até, saber muito menos do que sabiam com quatorze anos. Desejarão arduamente se preocupar com bobagens e meninas lindas que talvez nunca conhecerão. Tomar uma Coca-Cola quase sem gás e comer biscoitos recheados de quinta categoria, sem a pretensão do CPM 22...
O maior castigo para um homem que tem sonhos é o tempo. Sonhos são bebês que carregamos dentro da cabeça, por meros segundos ou infinitos meses, e, quando eles crescem, nós lutamos desesperadamente para crescer junto. Mas quando crescemos, precisamos escolher entre eles ou a triste realidade injustamente imposta por homens que um dia já sonharam e, muito antes, já foram meninos com seus quatorze anos e inúmeras pretensões. E a maioria de nós tem de deixar os sonhos para trás, abandoná-los em lixeiras ou doá-los a alguém com melhores condições de cuidar. Assim como, diariamente, algumas dessas meninas lindas fazem com seus bebês. Mesmo que meninos de quatorze anos não se importem e homens responsáveis não façam nada a respeito, por terem outros problemas mais importantes nas tardes da sua vida abafada e sem graça.
DOS DITOS POULARES I - Queria ser uma mosquinha..

Pessoas bisbilhoteiras e ociosas geralmente usam a expressão “queria ser uma mosquinha”, ou, com o complemento, “queria ser uma mosquinha pra escutar o que eles estão dizendo”, quando presenciam uma conversa alheia. A curiosidade, eu concordo, é uma dádiva, mas nesses casos, não passa de mero interesse em transformar as palavras dos outros em fofoca, falação.

Calor. Um sentimento que nem o guarda-sol consegue esconder. A oitava cerveja está bem menos gelada do que as outras. O isopor não está mais cumprindo o seu papel corretamente. Se continuar assim, daqui a pouco estarei tomando sopa de cevada. A bola está abandonada a horas, não ouso me esticar para pegá-la. Expor qualquer parte do corpo para fora do metro quadrado de sombra que o guarda-sol proporciona significa correr o risco de ser desintegrado pelos raios U.V.A., U.V.B., U.V.C., e essa merda toda.
Haroldo, o gato, não agüenta mais ficar parado. Os dias estão completamente cheios. Lúcia enterra o palito do picolé, eu molho as mãos no pouco gelo que resta no isopor, para refrescar o rosto. Onde está o cara que disse que o protetor não saía com a água? Nossos corpos estão completamente melados. Quesito inatividade, nota 10. Haroldo espanta uma mosca com as orelhas, mas ela insiste em pousar na sua cabeça. Ele vira a barriga para cima e esfrega as costas no chão. A mosca nos observa de sobre a ponta do palito que ficou para fora da areia. Esfregando as patas como se estivesse afiando os talheres antes de devorar a sua refeição. Nós, no caso. Obviamente a mosca não nos devoraria. Nem eu, nem Lúcia, nem mesmo Haroldo. Mas, como nessa vida certezas temos poucas, e nenhum de nós ousaria sair debaixo do guarda-sol nesse momento, preferi evitar o possível confronto sem precisar bater em retirada – isso só seria possível dentro de, no mínimo, três horas.
Peguei uma garrafa vazia e bati com ela no palito até enterrá-lo completamente. A mosca alçou vôo, mas logo que concluí meu objetivo tornou a pousar no lugar onde antes estivera o palito de madeira. Estiquei o pé até o limite da sombra e, com uma flexão dos dedos, joguei um pouco de areia no local. Ela voou até o ferro do guarda-sol e uma vez lá pousada, nos olhou com um tom de ameaça. Como se pudesse alçar vôo a qualquer instante e levar consigo não só o nosso guarda-sol, mas também a pouca sombra que nos mantém íntegros até agora. Primeiramente duvidei da mosca, “ela não teria a audácia de fazer isso”. A mosca nem sequer abalou-se, permaneceu firme como se pudesse medir o meu medo com os olhos. Naquele instante ela pareceu ter o controle da situação. Inclinei-me de maneira que pudesse mantê-la no meu raio de visão, não queria perdê-la de vista, mas mesmo assim, não abusei muito dos movimentos. Além do mais, ela parecia saber que, sob hipótese alguma, eu a atacaria enquanto ela estivesse pousada no ferro ou em qualquer outra parte do guarda-sol. Não colocaria a nossa sombra em risco por nada. Certo, a mosca postou-se estrategicamente, agora resta esperar. Praticamos o jogo da paciência por alguns minutos. Haroldo mantinha-se deitado de costas e cada vez que eu oferecia meu olhar de perplexidade Lúcia dava de ombros como se realmente não estivesse se importando nem um pouco. Eu não duvidava disso, mas bem que queria.
Servi-me de outra cerveja enquanto a mosca permanecia impassível. Tateei por sobre a toalha a fim de achar o abridor sem, em nenhum momento, tirar os olhos da mosca. Ela, por sua vez, com suas dezenas de olhinhos, manteve-se me encarando. Mesmo quando eu abri a cerveja e deixei a tampinha propositalmente virada com a parte molhada para cima, ela não saiu de sua posição. Nem deu a entender ter um mínimo de vontade de provar o sabor da minha cerveja. Manteve-se firme, em sua posição de superioridade. Ela era apenas uma mosca contra o mundo, mas nessa ocasião, o mundo inteiro teria que passar por cima de mim antes de encostar um dedo no ferro do guarda-sol onde a mosca permanecia irredutível.
Olhei ao redor. As pessoas pela praia pareciam não ver o que se passava. Haroldo continuava imóvel, diria até que estava morto se não se tratasse de um costume dele. Procurei em Lúcia alguma palavra de amparo, mas ela já não suportava mais assistir a minha “batalha” com o terrível inseto alado. Depois de pensar um pouco, cheguei a uma conclusão de como poderia fazer aquele ser peçonhento se afastar do nosso guarda-sol e, conseqüentemente, das nossas vidas. Abri o isopor, saquei um cubo de gelo e apertando ele com toda a força e o calor da minha mão fi-lo derreter e pingar. Infelizmente os pingos pareciam evitar a mosca. Ela mesma nem se moveu, mesmo quando algumas gotas que escorriam pelo ferro do guarda-sol passavam logo ao lado de suas patinhas asquerosas. A cerveja já não me descia pela garganta, não somente por estar quase quente, mas porque não conseguia mais relaxar sabendo que estava sendo constantemente observado. Resolvi fazer um sacrifício. Sim, muitas vezes um sacrifício é necessário para solver um problema aparentemente insolúvel, ou de alta complexidade. Tirei a toalha de perto e virei praticamente metade da minha cerveja no ferro onde a mosca estava pousada, evitando me aproximar demais dela. Lúcia xingou-me de diversas coisas, as pessoas ao redor não tiravam os olhos de nós, provavelmente pensando que estivesse se tratando de alguma briga de casal ou coisa parecida. Haroldo bocejava, cada vez mais cansado de não fazer nada.
A cerveja pareceu afugentar a mosca, mas não tive sequer a oportunidade de comemorar, pois Lúcia despejava sobre mim uma infinidade de palavras que me deixavam zonzo, a ponto de nem conseguir acompanhar o seu raciocínio. Lembrei de diversas coisas, inclusive o motivo de estarmos ali, naquele momento. Havia muito tempo que Lúcia e eu não conversávamos mais sobre os “nossos” problemas. Talvez este fosse o nosso maior problema, a falta de diálogo. Cinco anos de relacionamento e tenho certeza que ela conseguiria contar nos dedos, imediatamente, os poucos dias em que começamos e terminamos juntos. Sem trocar uma única palavra agressiva, fugir os olhares para outras coisas, ou pessoas.
Pessoas. As pessoas ao redor nunca nos pouparam de suas opiniões e comentários. Ninguém até hoje teve sequer a educação de pedir licença para se intrometer em nossa vida ou em nossas discussões. Todos pareciam esperar a oportunidade de dar um palpite ou criticar algo. Senhores da verdade e da razão. Nunca tive uma decisão 100% minha, desde que eu e Lúcia estamos juntos, sempre houve alguém para redefinir os caminhos a serem seguidos. Não sei até que ponto ela se importava com isso, mas, com certeza, foi uma semente de veneno plantada em nosso quintal. Ela sempre foi mais acessível e comedida do que eu. Aceitava sem problemas o que quer que fosse que alguém viesse lhe dizer, comentar, ou até, impor, mesmo que no momento seguinte ignorasse por completo aquilo que tinha ouvido, ou aproveitasse muito pouco. Eu, diferente disso, não suportava ouvir palpites e conselhos que não passavam de um pretexto para fuxicos. E, é claro, que isso foi minando o nosso relacionamento até o ponto em que nenhum dos dois conseguia dar um passo em frente com o mínimo de segurança que se espera possuir após esse tempo todo. Vivíamos recuando.
Novamente procurei uma palavra ou um olhar nas pessoas que nos cercavam naquela praia, cada qual com seu guarda-sol florido, colorido ou de propaganda. Esperava encontrar alguma expressão de satisfação ou do tipo “eu bem que avisei”, “viu, bem feito”, etc... Busquei no fundo de minhas memórias as centenas de pessoas que poderiam estar desejando agora ouvir tudo aquilo que Lúcia colocava pra fora e eu, desajeitado, tentava rebater. Pensei nas vizinhas, na empregada, na minha sogra, tias e até na minha própria mãe. Nos amigos e amigas, parentes e colegas de trabalho que, por algum motivo, estúpido que fosse, desejariam estar sobrevoando nossas cabeças. Nosso diálogo e pensamentos. E, nesse tempo todo, Lúcia não ofereceu um segundo de silêncio. Já quase ia esquecendo a mosca quando a desgraçada cruzou o meu raio de visão, como que para lembrar que ainda estava ali. Apesar de tudo, e, da minha montanha de problemas, ela ainda estava ali.
Tomei as rédeas. “Cala a boca!” Falei sem nem medir as conseqüências do que dizia. “Como assim? Você acha que tem ainda alguma moral pra me mandar calar a boca? Depois de tud...” “Cala a boca! Simplesmente CALE A BOCA!” Ela não deve ter entendido, e dessa vez nem importava mais, porque na verdade nem eu conseguia assimilar o que estava acontecendo, queria apenas resolver o impasse com a maldita mosca cheiradora de merda de cachorro. Não importava mais nada além. Não podia mais reverter o placar, já estava derrotado. Nesse instante queria apenas o meu ‘gol de honra’. Queria quebrar a perna do principal artilheiro do time adversário. Mandá-lo para o chuveiro mais cedo. Melhor, mandá-lo para o hospital por uma semana. Ou talvez pelo resto da temporada. Mandá-lo pro inferno! Para o seu inferno particular.
Eu não tinha mais nada a perder. Dobrei cuidadosamente o caderno de esportes. Não pareceu oferecer muita firmeza, então, dobrei também e adicionei os classificados de imóveis. Curioso lembrar disso agora, mas, meu pai sempre falou que tinha dois imóveis. Um era a casa onde nós morávamos, o outro era eu. Segundo ele, ‘eu não me mexia pra nada...’ Nunca achei graça disso, mas, não esquecendo do meu objetivo agora, bati o mata-moscas improvisado contra a palma da mão esquerda, apenas pra sentir um pouco do meu poder de retaliação. Aguardei uns instantes e finalmente observei a mosca preparando-se para pousar na orelha esquerda de Haroldo. Ajoelhei-me sobre a toalha e apoiei a mão esquerda na areia, que parecia mais o fundo de uma panela em fogo alto, mas não importava mais. Ergui silenciosamente a mão direita empunhando a minha clava esportiva, “tranqüilo e infalível como Bruce Lee”. Ao descer ela zuniu cortando o ar como se nem a mão de deus pudesse pará-la nesse momento. Percorreu majestosamente um longo percurso até que TLUFT! Encontrou algo que a impedisse de seguir adiante. O ponto onde se encontrava a maldita mosquinha. A orelha esquerda de Haroldo, e um pouco mais talvez.

Baixada a adrenalina do momento, olhei ao redor. No chão. Tentando encontrá-la. Em vão... A mosca com certeza não morreu, possivelmente tenha ficado surda. Já o gato, não teve tanta sorte... Enterrei o bichano ali mesmo, ignorando os olhares e o falatório dos outros veranistas; e, logo que havia terminado, o sol já estava baixo o suficiente para que pudéssemos ir para casa. Lúcia sacudiu a toalha e colocou as coisas dentro da sacola de qualquer maneira, eu fui até a água lavar o ferro do guarda-sol e depois de abraçar-me ao isopor cheio de garrafas vazias, fomos embora em silêncio, sob o olhar repreensivo de todos aqueles que não entendiam nada do que estava acontecendo.
“Queria ser uma mosquinha...” Que expressão mais estúpida essa!
10 membradas - 01

- Vamos.
- Só um instante...
- Certo, mas lembre-se, estamos atrasados.
- Sim, sim. Vou me apressar.
- Você sempre diz isso, e mesmo assim...
- Pronto!
- Pegou tudo?
- Claro.
- Não sei, não confio em você. Melhor revisarmos.
- Não é necessário, estou dizendo que está tudo aqui.
- Se não estivéssemos atrasados...
- Não se preocupe, está tudo aqui.
. . .
- Dobre na próxima, à direita.
- Já estamos chegando. Relaxe.
- Difícil. Não me sinto confortável com a idéia de VOCÊ ter pego as coisas..
- Eu já disse que está tudo aqui. Quando você vai acreditar em mim!?
- Certo, certo. Não é motivo para discutirmos.
- Mas é que você
- PEGOU A ROSA?!
- ...
- PEGOU OU NÃO?!
- Eu tinha colocado ela em cima da mesa. Puxa... não acredito que esqueci da Rosa.
- Não acredita?
- ...
- E EU?! O QUE VOCÊ ESPERA QUE EU FAÇA???
- Não sei, talvez ela não apareça...
- Talvez, talvez... DANEM-SE OS SEUS “TALVEZ”!
- Mas..
- Cale a boca. Sabe o que acontece se não chegarmos com a Rosa?!
- Mas eu acho que ela não vai estar lá...
- ELA VAI ESTAR!
- Pelas probabilidades lógicas, ainda temos 50% de chances...
- De quê?
- De ela não estar...
- Esquece. É melhor você não contar muito com os seus 50%. Ela vai estar
- É, mas... pelas probabilidades lógicas..
- Esqueça as probabilidades lógicas! Deixe eu te dizer uma coisa: NÃO FAZ DIFERENÇA ELA ESTAR OU NÃO!
- Mas, eu achei que a Rosa era...
- Você não está aqui para achar nada. Acredite em mim. É um enorme erro aparecermos sem a Rosa.
- Podemos voltar e buscá-la então...
- Não dá tempo. Já estamos atrasados.
- É melhor atrasar-se um pouco mais, mas levar a Rosa.
- Já estamos MUITO atrasados!
- E se nós não formos? Ela nunca saberá que esquecemos a Rosa...
- Se nós não formos, ela virá atrás de nós. E a Rosa não vai resolver coisa alguma.
- E se pegássemos a Rosa e saíssemos da cidade?
- Ela irá nos encontrar. Provavelmente antes de chegarmos no primeiro posto de combustível.
- Podemos encher bem o tanque. Tem um posto logo ali na outra esquina...
- Não seja estúpido!
- Podemos levar galões sobressalentes também. Temos espaço no carro, e assim, não precisaríamos parar pelos próximos novecentos quilômetros...
- Não te ocorre que mais cedo ou mais tarde ela vai nos encontrar?
- Mas...
- Quando você for até o banheiro, quando pedir um café, quando atender um telefone público no meio do nada, quando você estiver no escuro chorando... Ela vai estar logo ali. Do seu lado. Esperando apenas o momento certo...
- Mas...
- E quando passarem anos e anos, e você achar que ela já desistiu. Esqueceu. Não dá mais bola... Ela vai te encontrar na hora mais imprópria. Com as calças na mão. Limpando o seu rabo sujo. E vai fazer você desejar que o seu pai tivesse apenas tocado uma punheta sozinho no banho ao invés de ter ido foder a sua mãe, e a vadia ter gerado um ser tão desprezível como você.
- Mas afinal... porque ela quer tanto a Rosa?!
- Não sei, essa é uma das coisas dessa vida que nós nunca entenderemos.
- ... não pode ser verdade...
- É a mais pura verdade. Chegamos.
- E o que vamos fazer?!
- Você eu não sei, mas eu preten...
10 membradas - 02

Já era tarde, há horas eu estava dormindo.
O telefone tocou.
Antes de atender tentei identificar o número, me pareceu familiar.
Atendi após alguns segundos.
Muito barulho do outro lado, gritaria.
Difícil de entender as palavras ou o que estavam falando.
Da mesma maneira, demorei a reconhecer a voz.
Uma voz cansada e um tanto embriagada também.
Era eu.
Em uma festa que ainda não tinha acabado.

- Vem me buscar!
- O que?
- Vem me buscar!
- Onde você está?
- Como assim, “onde eu estou?”
- Sim! Já viu que horas são?
- Danem-se as horas. Preciso ir embora daqui, já!
- Algum problema?
- Não. Quer dizer, não agüento mais, preciso dormir, minha cabeça tá girando.
- Porra, não acredito...
- Não me importa se você acredita ou não. Pode POR FAVOR vir me buscar?!
- Certo, certo. Onde?
- Ora... Naquela festa.
- Como eu vou saber em que festa?
- Pode ter certeza de que você sabe, basta ir até a garagem. Você sabe o caminho.
- Qual é, chega de bobagem! Qual festa?
- Aquela de terça.
- Não lembro...
- É claro que não. Amanhã eu também não vou lembrar...
- Mas então...
- Então chega de conversa. Vem me buscar. Vem logo!
- Você vai se arrepender disso...
- Eu já estou me arrependendo, por isso é que preciso ir embora.
- O que você fez?
- Não posso contar agora, muito menos por telefone.
- Puta merda... Já vi que eu estou fodido.
- Você não tem nem idéia. Mas agora o importante é ir embora. Rápido!
- Certo. No caminho você me conta como eu fui parar aí.
- Perfeito! Agora vem.
- Quando chegarmos me lembra de esconder a chave do carro.
- Já tentamos isso uma vez, lembra? Não adianta... Eu sempre lembro onde está.
- Bom, da próxima vez vamos fazer melhor.
- Não sei se vai haver próxima vez.
- Porque?
- Rápido. Chega de conversa, você está demorando muito.
- Espere! Estou calçando os sapatos.
- Não precisa, isso agora não é importante. Vem logo!
- Porra e se eu não achar o lugar...
- Vai achar, já disse. Quando entrar no carro você saberá o que fazer.
- É bom pensar numa história muito boa. Ninguém aqui em casa vai acreditar.
- Não tem ninguém aqui em casa mais...
- Como assim?
- Vai logo até a garagem...
10 membradas - 03

- Bruno! Já resolveu o problema?
- Não, senhor Giulliani. Está quase.
- Acha que nós temos o dia todo, Bruno?
- Não senhor. Perdão.
- Nada de desculpas. Já estou cansado dos seus atrasos.
- Perdão senhor. Hoje eu resolverei.
- Hoje?! Você tem até o meio dia. Depois disso serei obrigado a tomar providências que, com certeza, não lhe agradarão nem um pouco.
- Por favor senhor Giulliani, tenha consideração. Eu sei que posso resolver isso.
- O tempo está passando Bruno.
- Certo, certo.
. . .
- Senhor Giulliani!
- Sim Bruno?
- Acho que consegui.
- É melhor que tenha conseguido mesmo. Seu tempo acabou.
- Mais dois
- Não.
- Mas... como?!
- Você está errado Bruno. E o tempo acabou.
- Senhor Giulliani! Por favor!
- A resposta era menos seis.
- NÃO PODE SER!
- Você está reprovado Bruno...
- Por favor, me dê mais uma chance senhor Giulliani!
- Ano que vem Bruno. Ano que vem...
10 membradas - 04

- Alô...
- Desliga.
- Alô?
- Desliga. Eu já disse.
- Como assim... Quem está falando?
- Mandei desligar. Não interessa quem está falando.
- Mas, mas...
- Nada de “mas”. Isso é um engano.
- Mas, pra que número você ligou?
- Não importa o número, não era pra você atender.
- Quem está falando?
- Desliga. Antes que eu perca a paciência.
- O que?
- DESLIGA!
- Escuta aqui, foi você quem ligou!
- Não me interessa. Eu estou mandando VOCÊ desligar.
- Por acaso isso é algum tipo de brincadeira?
- ...
- Alô. Alô?
- Acho que você não está me entendendo...
- Não. Você ligou pra cá, não se identificou, nem sequer perguntou “de onde fala” e está me mandando desligar o telefone.
- Exatamente. E vou ligar novamente assim que você desligar esta merda de telefone.
- Duvido!
- Desliga então!
- Você quem pediu!
. . .
- Alô...
- Desliga.
- O que?
- Desliga.
- Não acredito que você vai começar com isso de novo...
- Desliga.
- Olha só, eu tenho uma porção de coisas pra fazer, e não tenho tempo pra ficar perdendo com um espertinho que pensa que tem 12 anos e quer brincar no telefone...
- Desliga então...
- Não vou desligar!
- Bom... você sabe o que faz.
- Com quem você queria falar?
- Isso não é problema seu. Desliga logo.
- Não antes de você responder umas perguntas...
- Eu não vou responder merda nenhuma. Você está perdendo o seu tempo.
- Na verdade não. Eu menti. Não tenho nada pra fazer. Tirei o dia de folga e vou ficar aqui, no telefone, ouvindo você pedir desesperadamente que eu desligue...
- Será...?
- Quer apostar?
- Aposto essa merda de croquete que você estava fritando que você vai desligar logo logo.
- Como assim?
- Coloca no gancho. Desliga. Simples...
- Como você sabia do croquete?
- Fácil...
- Não! Explica!
- A julgar pelo seu papinho besta de dia de folga... imaginei que estava fritando uns croquetes, só isso...
- Não é verdade!
- Bom, então desliga e fica por isso mesmo.
- Como você sabia que eu estava “fritando” e não “assando”?
- Você é muito previsível...
- Eu não sou previsível!
- Bom, você não desligou até agora...
- E nem vou desligar enquanto você não disser quem está falando!
- Azar o seu, EU tenho o dia todo...
- É, mas não esqueça, é você quem está pagando a ligação...
- É mesmo? E você acha que isso me preocupa?
- Talvez não preocupe agora, mas daqui a duas horas...
- Você não vai agüentar duas horas!
- Quer apostar?
- O que?
- Ora, sei lá...
- A sua coleção de vidros de sabonete líquido.
- Eu não tenho nenhuma coleção de vidros de sabonete líquido!
- Não tem é?
- Não!
- Puxa, então liguei pra pessoa errada...
- É mesmo? E pra que número você queria ligar?
- Não interessa. Desliga!
- Agora eu quero saber!
- Então desliga!
- Mas, se eu desligar...
- Eu vou ligar de novo. A cobrar.
- Duvido!
- Desliga...
. . .
- Alô...
Chamada a cobrar, para aceitá-la continue na linha após a identificação...
- Alô?
- Não acredito...
- O que?
- Você atendeu de novo!
- Sim, você esperava quem?
- Você sabe muito bem quem eu esperava!
- Não, não sei. E, além do mais, você não se identificou após o sinal!
- Porque não era pra você atender.
- Mas, eu avisei que ia atender.
- Sim, mas eu não pensava que você fosse TÃO previsível...
- Eu não sou previsível!
- Ah é? Prove!
- Bom... Aposto que você não sabe que filme eu estava vendo enquanto fritava os croquetes...
- Eu sei sim. E não adianta você tentar me enganar.
- Então fala que filme era!
- Você não estava vendo filme nenhum... Estava catalogando a sua coleção estúpida de vidros de sabonete líquido.
- Mentira!
- Quer que eu prove?
- Não...
- Viu!
- Quem está falando? Por favor, me diz...
- Desliga.
- Não...
- Desliga!
- Só se você disser quem está falando.
- Eu não vou dizer quem está falando!
- Mas...
- Chega de “mas...”!
- Isso não é justo!
- As eleições também não são... Conforme-se...
- QUEM ESTÁ FALANDO!!!
- Desliga agora.
- Só se você me disser quem está falando.
- Desliga. Eu vou ligar de novo, e se você atender, eu... eu... EU NEM SEI O QUE EU VOU FAZER COM VOCÊ!
- Tá! Eu vou desligar, mas só porque você ligou a cobrar...
- Desliga logo.
- Ok, mas liga de novo...
- Eu vou ligar, mas tenho pena de você se atender...
- Mas, se eu não atender, como vou saber que é você quem está ligando?
- Não vai...
- Droga!
- Seus croquetes estão queimando.
- MERDA! MERDA!
- Desliga...
- Certo. Mas só por causa dos croquetes...
- Danem-se seus croquetes. Você tinha esquecido de colocar sal.
- O que?
- DESLIGA SEU FILHO DA PUTA!
- Pronto!
. . .
- Alô?
- ...
- Alô? ALÔ?
- São 16:43...
- O que?
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Esbocei um sorriso
O segurança continuou me olhando como se não fosse com ele
Disfarçou
Olhou para os lados
Para o coturno recém lustrado
E fingiu ter ouvido alguém chamar
Levemente deu as costas para mim
Por segundos
Quando virou-se novamente eu estava com a cabeça abaixada entre os ombros
Balançando-a em sinal de negativa
E sorrindo
Levantei a cabeça
E pude ver claramente ele soltar a presilha de segurança que mantém a pistola presa na frente do colete
Me olhou sob as sobrancelhas franzidas
Dando a entender que isso era um aviso
Com o dedo médio ajeitei meus óculos escuros
Joguei o corpo um pouco para trás e cruzei os pés por cima da mesa
Reclinando a cadeira apoiada apenas nos pés traseiros
Estiquei a mão
Peguei a garrafa e dei um gole na minha cerveja
Com as costas da mão esquerda limpei um pouco do líquido que escorria pelo canto da boca
Devolvi a garrafa à mesa fazendo barulho
Agora realmente alguém na sala ao lado havia chamado ele
O segurança olhou para o lado e acenou afirmativamente com a cabeça
Depois disse estar “tudo sob controle”

Estamos em uma loja de conveniência
O caixa 24 horas estragou
Um técnico realiza a manutenção sob a supervisão de cinco seguranças
Ninguém entra nem sai da loja, apenas o pessoal do posto de gasolina
Estou no meu horário de almoço e eles não têm autoridade para me pedir que saia da loja
Poderia facilmente mover um processo contra as três empresas
A que administra a loja
A dos caixas 24 horas
E a de segurança
O segurança nem imagina que estou pensando nisso
Muito menos que o seu emprego pode estar em jogo
Ou será que pensa?
Espero ele voltar a atenção para mim novamente
Mostro a língua pra ele
Muito rápido
Mas por tempo suficiente para que ele perceba
Tomo outro gole de cerveja
Sento a cadeira corretamente no chão
E me levanto para ir até o banheiro
Ele apenas acompanha com os olhos
Disfarçando
Assovia
Uma melodia estúpida e sem musicalidade alguma
A porta do banheiro tem problema na maçaneta e nenhum trinco improvisado
Mijo com a porta parcialmente aberta
O suficiente para que o técnico ouça na outra sala
A tranqüilidade do meu mijo talvez perturbe o seu serviço
A cerveja que eu tomo muito mais
Com certeza
Deixo o mijo ali, sem puxar a descarga
Lavo as mãos e retorno ao meu lugar
O segurança permanece irredutível
Imagino o suor correndo pelo seu corpo sob o pesado colete
A vontade de descarregar a pistola no primeiro idiota que provocá-lo
Um universo de frustrações contidas
Olho em sua direção por um momento e contenho o riso
Abaixo a cabeça escondendo um enorme sorriso com a mão
Percebo ele segurar firme o cabo da pistola
Ele quer intimidar
“Vestiu sua roupa de macho”
Está nervoso
Perdeu completamente a calma que mantinha até um instante atrás
Acho que ele chegou no ponto certo
Nem liga mais para a segurança da máquina
Está até tentando esquecer que tem mais quatro colegas aqui

Quanto dinheiro será que tem naquele caixa 24 horas?
Será que ele sabe?
Será que algum dos seguranças sabe?
O técnico, talvez...
Não
Acho que nenhum deles tem a mínima idéia
Mas, com certeza, se fosse um valor pequeno, não teriam enviado cinco
Apenas um ou dois seguranças
E talvez dois técnicos
Para agilizar o serviço
Não acho que estraguem tantos caixas por dia
E certamente a empresa possui mais de um técnico
Talvez uma dúzia
Porém, dois técnicos poderiam enganar dois seguranças
Talvez até suborná-los
Mas ainda assim haveria as câmeras da loja de conveniência
Eles poderiam negociar com os funcionários para que as câmeras que filmam o local fossem seqüencialmente desviadas por alguns minutos
Para criar uma “zona morta” que permitisse aos técnicos retirar uma quantia de dinheiro do caixa
Mas quem instalou as câmeras ou um técnico em edição de vídeo poderia descobrir a farsa
E ninguém saberia quem será essa pessoa até serem todos desmascarados
Mas talvez fosse tarde demais
Poderiam fugir com o dinheiro para o México
De Kombi

Ele percebe que eu estou pensando
Seu nervosismo aumenta a cada minuto
Não consegue mais soltar a mão da arma
Olha para um colega na outra sala e acena afirmativo com a cabeça
Isso parece tranqüilizá-lo
E se os cinco seguranças pensassem em roubar o dinheiro?
E matassem o técnico
E os funcionários da loja e do posto
E destruíssem as câmeras

Não...
Melhor seria subornar o técnico
E os funcionários da loja
Um deles poderia providenciar que os funcionários do posto não precisassem entrar na loja
Distraí-los
E posicionariam-se em frente as câmeras de modo que o técnico não fosse filmado retirando o dinheiro
Colocaria na maleta de ferramentas vazia
Ou nos bolsos internos do casaco
Apenas notas graúdas
Que seriam passadas para uma sacola escondida ao lado do vaso
Em duas ou três idas ao banheiro
Fora do alcance das câmeras
E depois um por um dos seguranças iria até lá “fazer suas necessidades” e embolsar sua parcela
Mas talvez não conseguissem retirar um valor alto o suficiente
Que lhes desse a segurança necessária
Teriam que dividir entre muitos

Ou não...
Poderiam criar um álibi
Alguém que “roubasse” o caixa usando o técnico como refém
E tivesse um comparsa esperando no carro, fingindo calibrar os pneus
O dinheiro todo do caixa 24 horas seria retirado e colocado em sacolas da loja de conveniência
Mais o dinheiro do caixa da loja
Os seguranças colocariam suas armas no chão
E não ofereceriam resistência
O ladrão e o técnico sairiam pela porta da loja
Com todo o dinheiro
O pessoal do posto não está sabendo de nada
E as câmeras filmam apenas o que acontece dentro da loja
O ladrão coloca as sacolas com o dinheiro no carro do comparsa
Solta o técnico
E foge com o dinheiro
Que depois será repartido entre os oito
E a menina da loja de conveniência

Nove frações de um valor que ninguém sabe exatamente qual é
Pode ser muito pouco
Muita gente pra dividir o dinheiro
Melhor o ladrão matar a menina da loja de conveniência
Antes de fugir
E numa troca de tiros com os seguranças
Matar o técnico
E fugir com o dinheiro
Que depois será dividido entre sete

Muita gente ainda
É melhor ter certeza do valor exato antes
Melhor matar a menina da loja
Um dos seguranças
Apesar do colete, um tiro na cabeça desvia bastante a atenção de quem estiver vendo os tapes depois
Matar o técnico antes de entrar no carro
E matar o motorista na primeira troca de carros
E dividir o dinheiro por cinco

Mas como saber qual o segurança certo pra matar?
E garantir que os outros quatro não vinguem o maldito filho da puta morto
Além disso, um tiro na cabeça não é algo tão simples
E nem pode ser ensaiado
Bom, na verdade nada poderá ser ensaiado
Mas isso não serve como consolo
Não agora

Um carro esportivo velho e mal conservado chega no posto
O cano de descarga faz um estrondo quando ele acelera
Me assusto e bato o braço na garrafa de cerveja
A garrafa vira e antes que eu consiga levantá-la um pouco do líquido escorre na mesa
O segurança olha para seus colegas e me faz um sinal com a cabeça
Com o dedo indicador da mão direita que segura a pistola ele aponta para o banheiro
É lá que está a minha arma
Tomo o resto da cerveja de um gole só
Vou até o banheiro
Puxo a descarga e mando aquele mijo embora
Um pouco da água que passa pelo cano mal vedado pinga em cima da sacola escondida ao lado do vaso
O som da descarga avisa que é hora de prepararem-se na sala ao lado
Retiro a arma que eles deixaram escondida dentro do reservatório de água sanitária
Tiro ela de dentro da bolsa plástica
Confiro
Tem apenas duas balas
Para a menina da loja e o motorista
Apenas os “alvos fáceis”
Preciso de alguma garantia para a hora do rateio do dinheiro
Pego também a outra arma, que está dentro do porta papel-toalha
Esta é por minha conta
Automática
Treze balas
Um número de sorte para mim
Mas o azar de muitos
Coloco a primeira no bolso
E escondo a segunda na cintura
A porta do banheiro não fecha
Melhor não demorar muito

Estamos nos fundos da loja de conveniência
Numa área com mesas para os viajantes descansarem ou se alimentarem
Ele está me esperando na porta que dá acesso à parte principal da loja
Passo pela porta e o segurança me acompanha apenas dois passos atrás
Vou até o freezer e pego outra cerveja
Uma Heineken
Isso não estava nos planos
O combinado era Skol

A Skol é vendida por R$2,00
A Heineken por R$2,50
Eu deveria colocar a mão no bolso e retirar uma única nota de R$2,00
E quando a menina abrisse o caixa sacaria minha arma
Se eu precisasse procurar uma moeda no bolso talvez deixasse a arma aparente
Ou poderia inclusive deixá-la cair
E se precisasse guardar o troco de uma nota maior, talvez a menina fechasse a gaveta do caixa antes de eu sacar a arma
E se ela entrasse em choque e não conseguisse abrir o caixa novamente poderíamos ter problemas
Além disso, ela precisaria se abaixar para pegar o abridor
Heinekens ainda não têm tampa abre-fácil
Enquanto estivesse abaixada ficaria fora do meu campo de alcance
Isso muda muito as coisas

Foda-se
Peguei a Heineken
Pago com três notas de R$1,00
- Fique com o troco!
Pego logo a pistola da cintura
A mais carregada
13 balas
07082007a

Loucura,
o som do vento soprando

Nas árvores o balançar de folhas e galhos
rufando alto
um enorme pulmão ofegante
respirando no escuro com dificuldade
ressonando na noite enquanto a cidade dorme

Exaurido,
não só o pulmão
resfolegando um ar frio de fim de outono
as pernas executando um balé automatizado
colocando passos sobre passos sobre passos
os pés carregando um par de sapatos cansados
um suor que escorre insensato debaixo do casaco
faltam bolsos para tantas mãos tão geladas
falta um fluído que acenda, incendeie, satisfaça

O rosto sem expressão não empresta mais nada
nem um sorriso, nem um riso, nenhuma gargalhada
a alegria dos dias de ontem foi cortada
foi-se

Os esgotos abrigam as baratas
que já não ousam colocar suas patas nas calçadas
estão todas esgotadas

Calçadas cansadas, vazias, vagas
os bancos de praça abandonados
silêncio soturno
nada nem ninguém parece estar acordado no mesmo quilômetro quadrado

Há algum tempo ainda havia os “da rua”
as vítimas das patrulhas
das operações oportunas de porra nenhuma
do pé na porta imposto, poderoso e apocalíptico
havia os que deviam a vida
os mesmos que devem ter acabado com ela
pra não pagar mais uma dívida imposta
havia essa gente
indigente

O céu está armado
não dá pra se abaixar
muito menos tentar correr
melhor apenas continuar caminhando
nada que desperte os que estão dormindo
nada que desperte a atenção
pensar no passado não leva a nada
uma garrafa de vinho apenas
levaria toda a tristeza embora
traria o passado à tona
uma garrafa de vinho sempre tornou o passado mais vivo
até mais vivo do que o desejado
mal passado

Os pássaros deveriam ir para o sul no inverno
mas estamos quase lá e os pássaros não estão chegando
o céu está armado, tudo mais ao redor está se armando
está sendo armado
talvez este ano os pássaros tenham mudado de lado
melhor esquecer e se manter caminhando

O gigante morto sopra mais uma vez sua brisa gelada
pulmão tuberculoso da noite
tosse duas ou três vezes, prenunciando
o bufar de uma brisa que seria a última antes da chuva
e então um sopro molhado assalta o rosto

Frio
é a garoa que dança no ritmo do vento
e é impossível prever seus passos
imprecisos, embriagados

Inveja da chuva

Pra qualquer lado que olhe a visão não encontra ninguém
sente apenas os olhos pesados de uma vigilância injustificável
nada de vistas-grossas
qualquer sentimento é motivo para uma chuva de perguntas e violência
no entanto, sente apenas a oportunidade de chorar
mas não é o momento
tudo ao seu tempo

Respira fundo como se o mundo fosse puro
como se o ar não fosse imundo
olha mais uma vez para cada lado
sente agora o alívio de ter dobrado uma dúzia de esquinas erradas
adentrar o nada que enegrece cada centímetro do terreno insone
uma garganta calada à prova de olhos grandes
sedenta, guardando uma porta de volta para a terra do nunca
do que nunca deveria ter mudado
tateia na escuridão suja das paredes e então desaba
uma chuva que o chão há horas aguardava
o chumbo grosso disparado de grossas nuvens cinza chumbo
carregadas
o céu está armado

Olha bem ao redor
do seu lado só palavras
os ombros carregam sem desconto o casaco ensopado
cada vez mais pesado
um estorvo não fosse o frio intenso
a violência da chuva incessante lava a alma
traz à tona memórias desagradáveis e desesperadoras
o momento de chorar e não sentir mais nada
esquecer o som das meias molhadas
das centenas de problemas
das palavras mal faladas
houve um tempo em que a chuva e as lágrimas mandavam tudo isso embora
uma dose bem servida, bem chorada
o momento passou, agora é hora de abrir a porta de volta

O som se propaga
o cheiro da cera derretendo sob a luz das velas
e suas chamas que combatem a escuridão de uma energia que foi cortada
foi-se
é inútil secar o rosto
é desnecessário
enquanto ainda pode sentir o gosto salgado do suor nas mangas encharcadas
inútil pensar no passado
nas palavras mal faladas
na sede que nunca cede
o céu está carregado e está disparando
sem poupar ninguém nem mais nada
o que resta é esquecer por um instante tudo que antes abominava
antes que os gigantes venham fazer sua jogada
seu circo cínico

Passando da meia noite
pensar demais é perseguir pesadelos
última chance de pedir mais uma dose
uma droga
uma música ao piano
ou apenas uma companhia para esquecer dos anos que passaram
esquentar os dedos, aquecer a garganta com uma conversa
última chance de pedir um tempo
mas não qualquer tempo
aquele tempo em que era preciso pedir passagem
entre as mesas estacionadas nas calçadas sujas da cidade baixa
pedi-lo de volta
será que é pedir demais?

Fumaça de cigarros compartilhada
misturando-se com o vocabulário escasso dos operários
oportunidades perdidas e o pior de tudo
pilhas de pecados imperdoáveis

Nada que os ouvidos não possam ignorar, que a mente não possa esquecer
entre um trago e outro
é direito culpar alguém aqui?
não, é cada vez mais difícil encontrar alguém direito

Olhar ao redor e reconhecer velhos amigos quase irreconhecíveis
conhecidos da noite e nada mais
operando no submundo confuso entre posses e policiais
a corrupção construída para destruir ideais
nunca uma bebida custou tão caro
e, é claro, que alguns de nós vão pagar
a alegria do lugar tenta abafar as conversas confusas em código
o inimigo está aqui dentro
dentro de nós
resta saber quem vai deixá-lo sair
resta saber quanto tempo ainda tenho pra sair daqui
tomar a rua novamente
sentir-se seguro sem nenhum muro para me proteger
caminhar pelas ruas escuras sob a chuva e olhares pesados
esquecendo de evitar as poças
colocando passos sobre passos sobre passos
até a tempestade passar
parece impossível pensar em outra coisa

Respirar fundo, trocar um olhar e pedir a dose de misericórdia
a passagem de volta para a realidade
a injetada glicose indesejada da madrugada
antes que a noite termine com as velas
com um pranto impraticável e perverso
um pé na porta imposto, poderoso e apocalíptico

tarde demais...